Para falar a respeito do filme O contador de histórias é preciso contar outra história que começou no ano passado. Em 2009, nesta mesma época, fomos desafiados a pensar com nossas crianças a respeito da adoção. Levar os alunos a escrever um texto sobre um tema tão difícil e tão distante da nossa realidade parecia ser algo quase impossível.
Para conseguir tornar o assunto mais próximo, os alunos foram levados a fazer uma série de pesquisas sobre a adoção: o que é, quem pode adotar, como adotar, quais as dificuldades para adotar, o que são abrigos, o que diz a nova lei sobre adoção e outros tantos questionamentos foram levantados durante as aulas e respondidos pela pesquisas realizadas e apresentadas pelos alunos.Mais tarde, uma representante do CEJA, órgão do Ministério Público que cuida dos processos de adoção esteve na escola e pôde dar ainda outros esclarecimentos para os alunos.
Mas, certamente, nenhum desses acontecimentos foi tão marcante quanto ouvir o relato do farmacêutico Sérgio que contou sua trajetória de vida após ter sido adotado aos três anos de idade e da própria Rose, representante do CEJA, que também falou sobre seu filho que adotou quando ele tinha 5 anos.
O grande resultado deste trabalho apareceu em novembro, quando nossos alunos receberam os prêmios de 1° lugar no concurso de redação do Ministério Público com o tema “Adoção: o direito de ter uma família” nas duas categorias em que participaram.
Estamos em 2010. Novamente, somos desafiados a tornar a sala de aula um espaço de debate, reflexão e sensibilização para o tema, dessa vez com a seguinte proposta: “Adoção: um novo começo”.
Em minha mente vem o filme que fui ver no cinema no ano passado na época que realizávamos esse projeto.Trouxe para ver com meus alunos a história real de Roberto Carlos Ramos, que aos seis anos é internado por sua mãe em uma instituição para menores carentes em Belo Horizonte.
Embora fosse uma criança muito inteligente e com muita imaginação, chegou aos 13 anos analfabeto, com mais de 100 fugas da fundação, várias infrações e o diagnóstico de “irrecuperável”.
Mas, o encontro com uma pedagoga francesa chamada Margherit Duvas mudou para sempre a sua vida. Ao ser adotado por ela, ele teve a oportunidade de ter uma nova história. Ele é a prova viva de que a adoção representa um novo começo. Certamente, ele nunca imaginou que de todas as histórias que contou, a sua seria a mais extraordinária.
Bem, eu que sou professora de Língua portuguesa, tenho pelo filme um olhar que vai além da bela mensagem de amor – aliás, que exemplo de amor! Amor que é capaz de ultrapassar as barreiras culturais e sociais, que vai na contra-mão de todo prognóstico de que aquele menino era “irrecuperável”. Amor divino.
Vejo, no filme, situações muito interessantes que estão intimamente ligadas à linguagem:
- O menino revela seu talento criativo mesmo sendo analfabeto: a primeira estória que ele conta narra de forma muito irônica e mesmo épica a aventura que o levou ao internato.
- Ao falar da sua infância, sua narrativa é repleta das metáforas da inocência: as pipas que fariam a rua voar, a giganta que vendia bijus, a bicicleta que cuspia fogo, o poder de fazer o dono do bar mudar de cor e mãe que deixava as roupas tão brancas que pareciam nuvens no varal.
- Na primeira fase do internato, o menino percebeu que as palavras carregam o incrível poder de atrair a atenção para o locutor. Foi uma estratégia inteligente, mas inocente repetir os nomes das doenças para ganhar mais atenção.
- Ao completar sete anos e ter que mudar para o lado dos meninos maiores, o garotinho percebe que ele entra em um mundo em que para sobreviver é preciso ser durão. E ser durão era sinônimo de violência, e violência se demonstra com pancadas e palavrões. Aprender a falar palavrões foi o batismo que o introduziu definitivamente ao mundo dos abandonados. Depois disso, ele não aceita mais os carinhos tímidos da mãe que se assusta quando percebe que aquele não era mais o garotinho que deixara para virar doutor.
- O mundo de suas histórias imaginárias ganha ainda mais contornos quando Roberto aprende a ler.
- Roberto aprende o valor das boas histórias quando vê Margareth comprar uma caneta por 10 cruzeiros. Na verdade, ela pagou pela história, a caneta vinha de brinde!
- O filme acaba dando pinceladas na história recente do Brasil na época da ditadura militar quando o governo autoritário propunha, como parte de seu projeto de “Brasil grande”, instituições que fossem capaz de internar e educar os filhos das famílias pobres, como se o Estado fosse mais apto que pais e mães para superar a pobreza e a marginalidade crônicas.
Em sua resenha crítica Marcelo Hessel explica que “era um período em que esquerda e direita apresentavam projetos totalizadores de transformação do mundo inteiro. Roberto Carlos foi salvo pelo projeto oposto. E, agora adulto, não anda por aí pregando grandes revoluções – mas revolucionando, uma a uma, a vida das crianças a quem conta histórias, a quem ajuda a transformar em cidadãos.”
Enfim, é um filme que emociona, que leva a rir e a chorar, nos faz pensar que por trás de cada rosto de criança no semáforo há uma história de tristeza e abandono. Levou meus alunos a perceber como eles são meninos e meninas de sorte por nunca terem que passar por situações semelhantes às do menino Roberto. Tenho certeza que cada um deles teve uma transformação positiva, do acreditar na vida, no amor, no ser humano, e que vão olhar com mais ternura as crianças que estão esperando para ter uma família, que esperam para ter uma nova história, um novo começo.
E a tarefa agora é essa: escrever um texto dissertativo, narrativo ou poético que fale desse sentimento de amor sem fronteiras de idade ou cor, que emocione e cative, que sensibilize e ensine.
Pode parecer ser apenas outra “tarefa de redação”. Mais uma vez, eu não sei qual será o resultado do concurso e nem espero que estejamos novamente entre os primeiros, pois isso não é o mais importante. O meu desejo, sinceramente, é que um dia, nosso mundo seja diferente porque nossas crianças de hoje, meus alunos, seus filhos, aprenderam a olhar de modo crítico o mundo que está além de seu quintal.
Como sempre, disponho-me para qualquer dúvida, colocação ou apenas ou bom papo.
Um forte abraço,
Com carinho
Profa. Regina
Um comentário:
Parabéns pela carta e incentivo aos colegas que acreditam que vale a pena contruir um mundo melhor,dando oportunidades e sabendo que o conhecimento e compreesão ainda é o melhor caminho para ajudar um ser humano na contrução cidadã.Estamos trabalhando com esse filme em nossa escola e o resultado é gratificante.
Maria Helena
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